A
contribuição do princípio de igreja em células (pequenos grupos) no
desenvolvimento da Missão Integral, e a vivencia dos propósitos de Deus como
atestação de uma igreja saudável.
Um pensamento.
Quem
já me conhece sabe que sou um cristão, sou um evangélico e sou um anglicano,
necessariamente nessa ordem. Aprendi isso dos lábios e das letras escritas pelo
Rev. John Stott que já se encontra na plena presença de Deus e por ter ouvido
por quase trinta anos dos lábios de meu
falecido bispo Revmo. Robinson Cavalcanti que desfruta também hoje dessa mesma
presença.
Sendo
assim, e engajado nesse ramo imperfeito do cristianismo entendi logo cedo o que
significava missão integral como sendo o
evangelho todo, para o homem todo e para todos os homens ( seres humanos).
A Igreja Anglicana, seguindo na direção do Pacto de Lousanne, declarou e, 1988
( Conferência de Lambeth) que a missão da Igreja seria:
· Proclamar o evangelho do
Reino· Batizar, ensinar e incorporar os convertidos a uma comunidade da fé
· Despertar nos corações dos fieis respostas de misericórdia às necessidades
humanas
· Denunciar as estruturas iniquas da sociedade
Como anglicano cresci na igreja vendo isso e entendendo que assim deveria ser. Logo cedo me tornei um defensor dessa declaração e procurei sempre fazer com que ela acontecesse em todas as suas dimensões por onde passei e tive a oportunidade de ministrar. Quando, porém me tornei pastor de uma comunidade local pela primeira vez, imediatamente procurei buscar essa realidade o que faço hoje quase 16 anos depois de ter plantado a igreja da qual sou reitor até essa data, a Paróquia Anglicana Espírito Santo. (PAES)
Tenho visto muito se falar em missão integral da igreja, mas nem sempre tenho visto os que falam realizarem essa missão. Esses são chamados os teóricos e me parece, existirão sempre, meu receio é que eles sejam a maioria, o que percebo estar acontecendo hoje nesse particular, salvo juízo equivocado de minha parte. Isso seria tema para um artigo bem mais denso a ser chamado de ortodoxia x “ortopraxia”, que pretendo escrever qualquer dia.
Entrando no tema desse artigo, quero apresentar como vejo que o movimento das igrejas em células pode colaborar com o cumprimento da missão integral e como a implementação do 5 propósitos de Deus pode trazer saúde para a igreja em qualquer circunstância.
Alguém vai dizer que existem essas e aquelas igrejas que possuem esse e aqueles desvios, eu também diria isso, mas não estamos falando de casos, estamos tratando de princípios a serem aplicados e quando aplicados corretamente surtem o efeito desejado e Deus é glorificado
ü Ajuda na Cristologia
Nenhuma eclesiologia seguir-se-á bíblica e integral se não colocar Jesus Cristo no centro de sua adoração. A declaração da igreja do novo testamento era clara “Jesus Cristo é Senhor”, mas isso não pode vir apenas na placa de uma instituição, precisa entrar em suas portas e da mesma forma na vida das pessoas. O senhorio de Cristo é mencionado centenas de vezes no NT. Tudo na Igreja existe para Jesus Cristo e para render-lhe honra e louvor. Sem a proclamação de Jesus como Senhor não há evangelho integral. Essa “cristologia” aponta para uma eclesiologia saudável. Segundo escreveu Rene Padilha
Quando a igreja perde de vista a centralidade do Senhor Jesus Cristo,
deixa de ser a igreja e passa a ser uma seita religiosa incapaz de relacionar
sua mensagem com vida prática e a vida pública. A igreja integral é aquela que
entende que todos os âmbitos da vida são campos missionários e busca forma de
afirmar a soberania de Jesus Cristo em todos eles. [1]
O princípio de igrejas em células tem levado
as pessoas a focarem suas vidas nesse senhorio e não apenas numa religiosidade obscura
e morna. A grande dispersão da liderança e o centro da mensagem na pessoa de
Cristo tem ajudado cada cristão a focar sua vida em servir e adorar a esse
cristo Senhor e não simplesmente a aceitar uma salvação que por mais que seja
importante não completa o evangelho integral. As células, lideradas por pessoas
comuns ( chamadas de leigos) , revelam esse senhorio, as reuniões, focadas em
motivar todos a viverem esse senhorio ajuda na formação de uma adoração cristológica.
O alvo de cada líder de grupo é sempre fazer Cristo ser aceito como salvador e
adorado como Senhor. A simplicidade com a qual isso é passado dom púlpito para
os grupos e digerido semanalmente ajuda na formação de uma consciência
integral.
A
visão cristocentrica de uma igreja em células leva a uma adoração a Cristo e à
rendição de todo o ser nesse processo. Assim o primeiro propósito é cumprido e
Cristo permanece no centro, sendo ADORADO. ü Ajuda no discipulado cristão
A
teologia da Missão integral defende a prática de um “discipulado radical”. É entendido
como sendo um estilo de vida submisso à vontade de Deus e veementemente
missionário. É entendido que sem arrependimento e sem fé não há discipulado. O
propósito do discipulado é produzir na pessoa convertida a imagem de Cristo e
isso é um processo infindo, porém real e prático. O texto do Ev de Mateus
conhecido como grande comissão no lança a isso.
Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes
ordenei. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos”. Mt 28:19-20
Aqui segue uma exortação a uma prática do
ensino e o ensino envolve aquele senhorio já falado sobre as nossas vidas e o
ensino sobre tudo que Cristo ensinou como missão. Mais uma vez sendo esse
aspecto vital para a missão integral , o movimento das igrejas em células vem
dar a sua contribuição. Nessa visão o discipulado, o ensino começa logo no
momento em que a pessoa conhece a Cristo e dentro de um desses pequenos grupos.
Ele é condição e pré-requisito para os passos posteriores e para a tomada de
qualquer outra direção seja de servir ou de liderar. Não existe igreja em
células sem discipulado. E esse discipulado é feito dentro do próprio grupo, de
maneira intencional e programada. Não se espera que a pessoa se matricule em
uma classe dominical, ou em um curso promovido pelo comunidade. Existe uma ação
direta do líder e dos participantes em promover o discipulado pessoal, no dia a
dia, vivenciando a santa rotina vendo o exemplo dos demais seguindo também um
programa pré-estabelecido. De maneira geral em um período de alguns meses essa
pessoa está “preparada “ para transmitir o que aprendeu a outra pessoa que
chegue. Assim, segue-se o evangelho integral e cumpre-se o 2º propósito de Deus
que é levar o cristão a refletir a imagem de Cristo, DISCIPULADO.
ü
Na visão bíblica de Igreja
No
conceito de missão integral, e não poderia ser diferente, a igreja não é um
mero aglomerado de pessoas que se ligam aos demais centrados em interesses religiosos. O texto
de At 2:41-47 mostra o que é uma igreja em todos os seus aspectos. Retira
qualquer resquício do que se chama de igreja-gueto que se centra em uma
espiritualidade individualista e alienante. O texto mostra que ela é uma
comunidade que é inclusive foco de atenção, “tem a simpatia do povo”, é
inclusiva, vive em comunhão com quem está e se abre a comunhão com quem se
achega.
A
Igreja integral vive o senhorio de Cristo em todas as áreas, como já
dissemos e afirma isso em seu estilo de
vida. É uma comunidade missionária que olha para fora de suas paredes e tem seu
foco nos perdidos sem Deus e nos perdidos sem qualquer ajuda além de estarem com
ou sem Deus.
Há
alguns anos atrás visitei um país da América Latina onde fui observar de perto
uma grande igreja em células ali existente. Vi muitas coisas e confesso que
deixei de ver algumas outras e senti falta delas. No entanto o que vi me animou
mais do que o que não vi. Uma comunidade inclusiva, não sectária, atraente e acolhedora,
cheia de amor pelo ser humano. Vi a Igreja de Atos em ação. Depois disso tenho
convivido com outras igrejas e lideranças no Brasil e fora daqui e percebo o
quanto o modelo de igreja em células ajuda na formação de uma igreja mais
bíblica, que desenvolve comunhão que vai além de um encontro dominical ou de um
ativismo programático, que é focada em gerar novos crentes e assim se torna uma
comunidade atraente.
A
Igreja Romana esteve bem perto de entrar em algo parecido quando da criação das
comunidades eclesiais de base, guardadas as devidas proporções. Mas é um
conceito de igreja integral que lida com o Ser humano em todas as suas dimensões,
que se ajudam mutualmente e que vive uma ação que nega o clericalismo tão
presente na igreja institucional ( sobre isso voltaremos a falar) . O modelo de igrejas em células não nega ou
rejeita a instituição, mas coloca-a dentro de seu verdadeiro papel de
facilitadora e não de fim em si mesma. É uma comunidade que se pode antever o
começo de uma nova humanidade ainda imperfeita, mas com marcas positivas e
animadoras de uma família de Deus. Neste aspecto comunitário uma igreja em
células é o mais próximo modelo de uma igreja bíblica que desenvolve uma visão
integral, e não poderia deixar de ser assim. Isso é a práxis da ortodoxia, o
ser uma igreja comunitária. Assim vive-se também o propósito da COMUNHÃO.
ü
Ajuda nos Dons, Ministérios
e Serviço
A
Igreja de Jesus Cristo é um campo de treinamento de talentos inatos, manifestos
em dons, que geram ministérios, servem ao próximo e realizam o propósito de Deus
nesse mundo. O evangelho integral não pode prescindir disso. Biblicamente
falando a perspectiva bíblica de servir é trinitária de acordo com o que Paulo
escreve aos Coríntios .
Há diferentes tipos de dons, mas o Espírito
é o mesmo. Há diferentes tipos de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. Há diferentes formas de atuação, mas é o mesmo Deus quem efetua tudo em todos.
1 Co 12:6
Segundo
os estudiosos da Missão Integral não é possível exagerar a importância dessa
afirmação para uma eclesiologia para uma missão integral. As igrejas
evangélicas tem uma grande divida nesse
sentido e entre outros motivos a tendência de se viver um cristianismo intimista
e uma adoração ( culto) apartado da vida prática. Quando se vive uma fé assim,
ai de fato a igreja necessita de “sacerdotes” que intermedeiem a relação do
povo com Deus, surgem os especialistas que promovem cada vez mais a ênfase na
busca em suprir as necessidades espirituais dos crentes apenas. Nesses casos surge
a clara divisão entre clérigos e leigos, vida religiosa e vida secular, sagrado
e secular. Uma concepção limitada que fratura o ser e que encontra raízes muito
mais na filosofia grega do que em qualquer ensino de Jesus Cristo. Jesus era
hebreu e o conceito hebraico do ser é completo, integral.
O
Deus trino atua e distribui entre seus filhos os diversos dons que existem para
o bem comum segundo Paulo enfatiza aos coríntios. No conceito de missão
integral, o ministério é feito por todos que exercitam os diferentes dons
recebidos e em todas as áreas de necessidade do ser humano. Para René Padilha a missão exige uma “desclericalização” dos
ministérios e uma “laicização” dos leigos. Em outras palavras exige o
reconhecimento do caráter apostólico de toda a igreja. Em outras palavras
isso significa que o povo por serem discípulos são em si enviados ao mundo e os
líderes por sua vez são também povo sem serem no entanto mais nem menos que
eles. Isso está ligado ao ensino bíblico do sacerdócio universal de todos os
crentes tão destacados por Lutero, Calvino e os reformadores de maneira geral.
No
modelo de igreja em células isso é bem mais facilmente praticado. Todos são
enviados e isso não é apenas dito, é praticado. A célula é um núcleo missionário,
seu líder é um facilitador igual aos demais porém exerce o dom que recebeu de
liderança enquanto outros dentro do mesmo grupo estão em preparação para
isso e ao mesmo tempo servindo em
ministérios, realizando a missão, discipulando outros, agindo no meio social,
trazendo amigos para a célula, vivendo cada qual o seu chamado de forma
prática.
Isso
gera uma desclericalização bastante interessante. Sou reitor de uma paróquia
que trabalha com células e uma das coisas interessantes é o quanto menos eu e
minha equipe de pastores é solicitada para a realização de tarefas que na mente
de alguns são exclusivas dos pastores(as) quando não as entendem como
obrigações destes(as). Assim a missão ocorre de forma integral pois todos os
dons são exercitados, os pastores exercem seus chamados e não se constituem em
obreiros sacramentais apenas e o corpo , como diz Paulo como juntas e ligaduras, vai unido cumprindo
a sua função. Numa igreja onde a missão integral é vivida, a liderança “clerical”
da igreja é de caráter funcional, existe para capacitar o povo para o
ministério. Assim o modelo de igreja em
células e simplificador neste aspecto e leva a igreja enquanto povo de Deus a
desenvolver o propósito do SERVIÇO.
ü
Ajuda na evangelização
A
missão nunca seria integral se prestássemos todos os serviços e esquecêssemos de
proclamar a Palavra. O IDE é muito claro e em diferentes partes do NT se
apresenta uma grande comissão e em todas elas o kerigma é central. Nada supera
a proclamação. “Como ouvirão se não há
quem pregue? “
No
modelo de igrejas em células a evangelização faz parte do DNA de cada membro. É
impressionante a disposição das pessoas que vivem sob esta visão de igreja. O “espírito
de conquista” está sempre presente e trazer uma pessoa para Cristo através dos
pequenos grupos e dos seus relacionamentos é algo que não se discute, se
pratica simplesmente.
Um
Pastor amigo que lidera uma comunidade cristã, ligada a uma igreja histórica
tem sido para mim um exemplo de líder. Uma igreja que possui mais de mil
pequenos grupos em plena atuação, uma verdadeira maquina evangelizadora que
desperta no povo uma sede insaciável de trazer mais uma pessoa à Cristo, de servir
ao próximo da melhor maneira possível, e de ser agente de transformação da
sociedade. Esta comunidade coordena um serviço de cuidado com crianças de ruas
que é referência mundial, uma de suas líderes acaba de ser condecorada com uma
honraria pela Rainha da Inglaterra na passagem de seu jubileu. Isso é missão
integral facilitada pela visão de igrejas em células. Dele me veio a inspiração
para lançar em minha própria comunidade a iniciativa permanente chamada “+ 1
Para Cristo”.
A
evangelização através das células foge um pouco do sistema tradicional e é
focada na base dos relacionamentos. As pessoas aceitam o seu convite a uma
reunião ou a um evento porque lhe conhecem e não veem como você poderia desejar algo
para elas que não fosse bom. Isso está diretamente ligado ao tipo de cristão que
estamos desenvolvendo, numa igreja sadia, que produz cristãos sadios, esse
processo se dá com naturalidade. Assim , se cumpre o propósito da
EVANGELIZAÇÃO.
EpílogoPor fim, entendo ainda que o modelo de igreja em células contribui para a prática de uma Missão Integral no aspecto da liderança. Nesta concepção de missão a liderança deve ser serva e nunca manipuladora.
Alberto Guerrero afirma que
desde a reforma que muitos tentam viver o sacerdócio universal de todos
os crentes na prática. Mas isso tem sido um tema esquecido, cheio de pó e há
muitos convém que fique assim...pode o movimento de igrejas em células nos
ajudar? [2]
Eu
responderia que sim pode, e pode muito. O modelo de liderança numa igreja em
células é infinitamente superior em sua eficácia ao modelo de liderança de uma
igreja institucionalizada, engessada em sua hierarquia. E digo que é superior
não por motivos de qualidade das pessoas necessariamente, mas pela eficácia do
serviço prestado. Na maioria esmagadora das vezes é realizado por voluntários,
que fazem o que fazem por amor a causa e à Cristo, não são remunerados para
isso mas veem seu prêmio apenas refletido em um coração agradecido pela
salvação recebida e o privilégio de poder compartilhar de graça e com animo o
que da mesma forma recebeu.
Essa
é uma liderança serva e é isso que encontramos no modelo de liderança das
igrejas em células. Neste caso não interessa se igreja é “grande” ou “pequena”
, se tem um lindo prédio ou não, se faz parte de uma denominação histórica ou
está ligada a uma rede de igrejas livres, de fato, isso não faz a menor diferença
pois o que faz essas comunidades funcionarem é o “espírito de servir” existente
em cada líder e em cada membro dessas verdadeiras famílias de Deus.
Todos
estes aspectos tornam a Missão Integral algo extremamente prático e nos ajuda a
sairmos dos gabinetes de debates infindáveis, das discussões em congressos e
seminários que se estendem por anos e que, em alguns casos, estes ambientes
estão repletos de teóricos que muito dizem da Missão Integral, mas que pouco ou
nada fazem para integrar essa missão na vida de suas comunidades. Pastores que
alimentam o discurso da Missão Integral, mas nunca alimentaram uma alma, e os
pequeninos seguem passando por eles ao descaso de seus olhos e a
insensibilidade de sua prática.
O
modelo de igreja em células, como vimos e como defendem muitos dos principais
articulistas da Missão integral pode e tem contribuído para que a ortodoxia que
proclamamos se torne a “ortopraxia” que efetuamos. Assim, de fato, creio que as
células e os propósitos da adoração, do serviço, do discipulado, da comunhão e
do evangelismo se constituem em uma excelente estratégia para se viver a Missão
Integral da Igreja e tornar a Igreja de Jesus Cristo um corpo saudável
independente de seu tamanho.
Miguel
Uchoa
[1]
Igreja agente de transformação. Missão Aliança, Ed Kairos. P 50 2011
[2] Igreja agente de transformação. Missão Aliança, Ed Kairos. P 183, 2011